Mino: J B é a ameaça do apocalipse
Magistrados negaram a imparcialidade e se tornaram um poder despótico
publicado
29/10/2018
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Por Mino Carta, na Carta Capital:
A ameaça do apocalipse
Ainda não entendemos se por linhas tortas ou retas o Brasil corre o risco de sofrer um singular golpe dentro do golpe, a confirmar a nossa indiscutível liderança da imbecilidade política mundial. Temíamos que os golpistas de 2016, na ausência de um seu candidato potável, inventassem uma nova exceção para cancelar o pleito.
Prender Lula não era garantia bastante ao projeto posto em prática desde o impeachment de Dilma Rousseff. Erramos, e lá vem Bolsonaro como avalista da continuidade respaldado por fardados e togados.
As ameaças do capitão, proferidas no vídeo exibido domingo 21 na Avenida Paulista, ecoam sinistramente o tempo em que comunista comia criancinhas, enquanto no ar pairava o anátema: Brasil, ame-o ou deixe-o.
Bolsonaro alude aos “vermelhos”, ou seja, amplia o alvo de quantos haverão de escolher entre o exílio e a prisão, se não for a morte. Simples perceber que “vermelhos” são os crentes da democracia e da igualdade.
Bolsonaro não é um hipócrita, diz o que pensa ao negar os valores democráticos baseados no respeito da diversidade, na prática do diálogo e no livre debate. A se ouvir o tonitruante capitão, a democracia passa a ser sonho impossível de um povo que raríssimas vezes se aproximou dela.
Mas, sejamos claros, Bolsonaro sujeita-se à esperteza marqueteira do seu “Posto Ipiranga”, o economista Paulo Guedes, defensor do neoliberalismo extremado, embora seja sincera a continência à bandeira dos EUA. Não está sozinho na ribalta, exalta-o o apoio dos generais, da ativa e os de pijama.
E logo minimiza a fala do filho que não hesitaria em prender ministros do Supremo para apresentá-lo com um sorriso condescendente como um impulsivo afoito por saber que este Judiciário golpista não justifica qualquer resquício de preocupação.
Não é por acaso que a senhora Rosa Weber surgiu ao lado do general Etchegoyen para anunciar ao País que tudo corre às mil maravilhas no mesmo momento em que Bolsonaro esbravejava na Paulista. Mas que esperar de uma baixíssima Corte que desonra o Brasil, encabeçada por um certo Toffoli?
Ele a pretende sentinela de uma Constituição rasgada em mil pedacinhos, literalmente picada. Esta Justiça desvendada é de longe a principal responsável pelo golpe de dois anos atrás. Poderia ter impedido o impeachment e o governo ilegítimo de Michel Temer, e também os desmandos da Inquisição curitibana, e não lhe faltavam o suporte e os motivos oferecidos pela própria lei. Na rota inversa, estreitou a aliança com as quadrilhas no comando dos outros dois Poderes da República.
Aviada a receita bolsonarista, ganharíamos, nós todos brasileiros, o papel de cobaias de nova fórmula golpista que se conecta com o neoliberalismo a infelicitar o mundo e, de certa forma completa e reforça a anterior, com o retoque do autoritarismo elevado à enésima potência.
Recomenda-se anotar que, a despeito de faltar até agora uma definição mais precisa dos rumos de um governo Bolsonaro, a essência está suficientemente clara, graças aos gestos e às palavras do capitão.
Suas ameaças, proferidas em tom militaresco e português capenga, não deixam dúvidas, sem exclusão do anúncio da liberação do comércio de armas em um país recordista mundial em homicídios, cerca de 64 mil no ano passado.
Conforme esta edição haverá de mostrar, Bolsonaro é profissional do WhatsApp que valoriza a versão em vez do fato. É por aí que a nova prescrição golpista adquire sua inequívoca natureza brasileira: a vitória dos imbecis no auge da era digital.
CartaCapital encara a situação com a tranquilidade de quem cumpriu dignamente a tarefa da sua competência, alicerçada na fidelidade canina à verdade factual, no exercício desabrido do espírito crítico e na fiscalização do poder onde quer que se manifeste.
Quem me iluminou a respeito, décadas atrás, foi um notável redator-chefe do New York Times, que talvez Bolsonaro considere jornal “vermelho”. Quanto a nós, continuamos onde estamos e com os mesmos propósitos a nos conduzirem até aqui.
À mídia sempre alinhada de um lado só nos permitimos dirigir um apelo ao senso de responsabilidade que o momento exige. Do antipetismo midiático brotou a terrificante conjuntura em que precipitamos. No fundo, cabe percorrer o enredo desde o início. Primeiro ato: o lançamento da Lava Jato. Segundo: a reeleição de Dilma. Terceiro: o impeachment, a condenação de Lula, enfim a prisão.
Estamos na véspera do quarto e o termômetro da tensão bate no teto. Neste enredo, a mídia entregue ao seu antipetismo uivante traiu deliberadamente a verdade factual para satisfazer os interesses patronais.
Foi decisiva na manipulação da audiência, mas os seus profissionais chegaram, nesta véspera eleitoral carregada de justificados temores, a perguntar aos seus botões se porventura a ameaça Bolsonaro não os inclui.
O caso da Editora Abril, cuja nau capitânia é Veja, implacável veículo de falsas informações (até agora não entendo por que devemos chamá-las fake news em lugar de mentiras): os filhos de quem levou a editora à ruína fugiram para Miami (e onde mais?) com 10 bilhões de dólares em segurança em paraísos fiscais sem haver cumprido suas obrigações legais com algumas centenas de empregados.
Quantos leitores, ouvintes, telespectadores acreditaram nas falsas informações e assim fortaleceram sua descrença na política e nos políticos e sua certeza de que era indispensável uma mudança radical?
Sem excluir a possibilidade de naufragar na ilusão, CartaCapital acredita que seria de elevada conveniência para o Brasil se a mídia ocupasse a área abandonada pela mediação e recuperasse a verdade dos fatos. Esperamos haver ainda editorialistas, articulistas, colunistas, analistas, comentaristas que conhecem a diferença entre jornalismo e propaganda.
CartaCapital apoiou o candidato Haddad, mas manteve as críticas a respeito de sua peculiar disposição em tecer o elogio de Sergio Moro, algoz de Lula e primeiro motor do golpe de 2016. Segundo Haddad, Moro prestou um serviço ao levantar o problema da corrupção, embora tenha errado ao condenar o ex-presidente sem provas.
A bem do candidato derrotado, evoco algumas passagens do artigo de Luigi Ferrajoli, um dos mais respeitados juristas europeus, publicado com exclusividade por CartaCapital na edição de 22 de novembro do ano passado.
Declarava-se impressionado negativamente “por três aspectos inconfundíveis de práticas inquisitivas”, desde a confusão entre juiz e acusação, até “a demonização do imputado pela mídia alimentada pelo protagonismo dos juízes”, depois de inserir no permeio a denúncia da “premissa de um procedimento dedutivo que assume como verdadeiras somente as provas que a confirmam e como falsas todas aquelas que a contradizem”.
Ao se referir a Moro, Ferrajoli diz ser claro “que uma similar figura de magistrado é a negação da imparcialidade” ao exercer “um poder despótico” para levá-lo inclusive a antecipar o juízo, prática inaceitável em todos os países civilizados, ao expor “motivos óbvios de abstenção e afastamento do juiz”.
E conclui: “Os princípios elementares do justo processo foram e continuam a ser desrespeitados. As condutas aqui ilustradas dos juízes brasileiros representam, de fato, um exemplo clamoroso daquilo que Cesare Beccaria, no § XVII, no livro Dos Delitos e das Penas, chamou processo ofensivo, em que o juiz – contrariamente àquilo por ele chamado um ‘processo informativo’, onde o juiz é ‘um indiferente investigador da verdade’ – se torna inimigo do réu, e não busca a verdade do fato, mas procura no prisioneiro o delito, e o insidia, e crê estar perdendo o caso se não consegue tal resultado, e de ver prejudicada aquela infalibilidade que o homem reivindica em todas as coisas; como ‘se as leis e o juiz’, acrescenta Beccaria no § XXXI, ‘tenham interesse não em buscar a verdade, mas de provar o delito’.
É, ao contrário, na natureza do juízo, como ‘busca indiferente do fato’, que se fundam a imparcialidade e a independência dos juízes, a credibilidade de seus julgamentos e, sobretudo, juntamente com as garantias da verdade processual, as garantias de liberdade dos cidadãos contra o arbítrio e o abuso de poder”.
Quando visitei Lula na excelente companhia de Fernando Morais, dia 11 passado, ele queixou-se do tom baixo da campanha do seu candidato, insistiu na necessidade de atacar o “mercado” e, em relação ao juiz que o condenou sem provas, manifestou-se de maneira pouco parlamentar. Haddad tomou a rota oposta, não sei se com a aprovação de alguns ou muitos companheiros do partido.
Sobra para CartaCapital, e para mim, entre o coração e alma, a tristeza pela prisão do ex-presidente e por seu generosíssimo sacrifício. Trata-se de uma dor funda e inescapável para este amigo de Lula por mais de 40 anos e que esteve ao lado dele nas horas boas e más. Sempre fui lulista conquanto não me tenha filiado ao PT, apesar da insistência de outro amigo, Jacó Bittar. Expliquei que jornalistas têm de manter a independência.
Foi o que me permitiu inúmeras vezes ser crítico do partido e do seu líder, mesmo porque, no caso de Lula, a franqueza é própria da amizade verdadeira. Com ele já lamentei a crença na conciliação, de exclusiva frequentação das elites, a admiração com que prestigiou Meirelles, a Carta aos Brasileiros da campanha de 2002, saída da pena de Antonio Palocci, a demora em agir contra a ameaça do golpe desde a reeleição de Dilma Rousseff. E não faltaram outras situações de discordância.
Quanto ao PT, jamais desisti de registrar que, no poder, portou-se como as demais agremiações no Brasil tidas como políticas. Nada disso impedia que, durante os governos petistas, CartaCapital fosse apontada à execração pública na qualidade de “revista chapa-branca”, e tampouco adiantou demonstrar que outros veículos nativos foram muito mais largamente premiados pela publicidade governista do que a esta semanal que tenho a honra e o prazer de dirigir.
Tão logo tenha autorização para tanto, voltarei a abraçar o velho e caríssimo amigo. Neste momento, ocorre-me a figura de outro grande sacrificado, Getúlio Vargas, mais um qualificado “vermelho” para a lista de Bolsonaro. Duas grandes figuras da história brasileira, unidas no empenho e no sacrifício.