Quem tira o presidente é o eleitor
O Conversa Afiada reproduz trecho de excelente (sempre!) artigo de Maria Cristina Fernandes no PiG cheiroso:
Com quantos golpes se faz uma republiqueta
Antes de baixar a bola no tom da confrontação, o presidente Jair Bolsonaro foi informado de que havia muitos filhos de generais da ativa entre os "idiotas úteis" da manifestação contra os cortes na educação. Se os militares orgulham-se de traduzir os valores da classe média, seus filhos não poderiam estar em outro lugar.
O freio de arrumação passou ainda pela indicação da professora mais votada na lista tríplice da Universidade Federal do Rio. Primeira mulher assumir a reitoria, Denise Pires de Carvalho já se posicionou contrariamente tanto à cobrança dos cursos nas universidades públicos quanto a favor de fazer caber a UFRJ dentro do seu orçamento.
O presidente ainda marcou sua nova fase, de duração ainda indefinida, pelo recuo em muitos dos pontos mais sensíveis do decreto que liberou posse de armas no país, como a liberação do porte de armas para a prática de tiros de menores, agora submetida à autorização de ambos os genitores, além do porte de fuzis por civis.
A desistência de ir aos protestos do domingo, face mais exposta da moderação bolsonarista não se deu exatamente pelo receio de fiasco, mas pelo contrário. Analistas que monitoram redes sociais convocatórias, como o professor da USP, Pablo Ortellado, identificaram que o interesse no protesto cresce à medida que aliados de primeira hora do bolsonarismo, como o MBL de Kim Kataguiri ou a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL), críticos da manifestação, passaram a ser os principais alvos de bombardeio.
Ao confirmar ausência dos protestos, a despeito de ter incentivado a espontaneidade, Bolsonaro dá dois recados. Tem tropa para por na rua, mas seu papel é contê-la. Ao cultivar a moderação, Bolsonaro também busca esvaziar a viabilidade política de todos os polos, dentro e fora do seu governo, que se legitimam para ocupar o centro político, do vice-presidente Hamilton Mourão, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Resumiu-o com o inacreditável "o que eu quero mesmo é conversar", com o qual iniciou a semana.
Tanto Olavo de Carvalho quanto o mercurial Carlos Bolsonaro parecem submetidos ao toque de recolher da fase moderada, e de duração ainda incerta, do presidente da República. O guru fez uma pausa no Twitter e no Facebook, voltou, mas num tom abaixo do habitual. Já o 02, cuja instabilidade emocional preocupa o pai, isolou-se.
O ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, que chegou a ter ascendência sobre os filhos do presidente, prevaleceu na guerra de braço com Carlos. O principal elo entre o presidente e o filho hoje um ex-funcionário do gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Waldir Ferraz, um dos poucos a passar o réveillon na Granja do Torto com o eleito. Carlos continua no Twitter mas se mostra temporariamente mais dedicado aos temas de seu mandato de vereador no Rio.
O endosso presidencial a um texto que remetia às forças ocultas com as quais Jânio Quadros tentou permanecer no cargo com superpoderes antes de apelar à renúncia, jogou, pelo confronto histórico, água no moinho da moderação. O renunciante de 1961 apostava no veto militar ao seu vice, João Goulart, situação que não se repete com Mourão, ainda que o general não seja uma unanimidade e só venha a estar, indiscutivelmente, na linha sucessória a partir da segunda metade do governo.
O tom agressivo com os quais os manifestantes de domingo se anunciam já foi capaz de impor alguma racionalidade àqueles que anunciavam o voluntarismo do bolsonarismo como a redenção do país. Eleito deputado federal, Kim Kataguiri descobriu que a política não pode ser demonizada e as mudanças devem ser mediadas pelas instituições. Pomba-gira do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Janaina Paschoal, foi às redes sociais dizer que não faz sentido o presidente da República convocar o caos.
As manifestações de domingo, que ameaçam ir para cima do Congresso, ao ungir o presidente a fazer mudanças sob a inspiração divina com a qual foi eleito, também surtiram efeito sobre o Congresso, que freou a disputa irrefreada pela recriação de ministérios e aceitou a nomeação de dois técnicos para o Cade, pedágio por excelência do Centrão.
Está claro que não é um céu de brigadeiro que se abre para um país com 13 milhões sem emprego e outros 4,9 milhões que já desistiram de procurá-lo e abrem o fosso de sete anos consecutivos de aumento da desigualdade. Mas o desmanche da polarização estabelecida com a eleição presidencial pode ser o início da depuração das pautas que estão em jogo e que não vão desaparecer, num passe de mágica, com a troca de um presidente da República.
É nisso que uma parte dos articulistas críticos ao governo e parlamentares da bancada que chegou ao Congresso pelos ventos da renovação parecem acreditar ao bradarem que o momento não tem alternativas que não sejam a renúncia ou o impeachment. Arriscam-se a ficar falando sozinhos com os palanqueiros da radicalização de domingo.
Tão importante quanto a grande massa bolsonarista divisar as pautas que os unem é a oposição parar de falar "não avisei?". A catarse bolsonarista mostrou as seus apoiadores que, num governo, política se faz pela arregimentação, embate e convencimento. Evitar uma nova aventura de governo abreviado depende desse amadurecimento.
O Brasil já derrubou uma presidente por inépcia e paralisia administrativa sem que um crime de responsabilidade tenha convencido toda a nação. Impeachment não é pena para maus administradores. Esta é a função dos eleitores, os principais juízes de uma democracia.
Tirar um presidente do cargo é garantia última de uma Constituição que aí está para lembrar aos cidadãos que há compromissos históricos assumidos pelo concerto de interesses que um dia tiveram um projeto de nação. Se estes já não cabem no Brasil, cabe refazê-los, mediá-los e distribuir perdas para poucos e fortes e ganhos para muitos que, por fracos, dela estão à margem. Isso se constrói em casa, nas ruas e nas instituições. O resto é golpe e republiqueta.