Vargas, Jango, Lula. É o mesmo Golpe
PML: pergunte ao Gilmar...
publicado
04/07/2016
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Créditos: Juca Varella/Agência Brasil
Do Blog do Paulo Moreira Leite:
A decisiva resistência de Lula
A visão convencional sobre a transferência das investigações sobre Lula para o juiz Sérgio Moro costuma ser apresentada numa lógica de aparência imbatível. A ideia é simples: depois que o Senado decidiu afastar Dilma provisoriamente de seu posto, encerrando a possibilidade de Lula assumir a Casa Civil, não faria o menor sentido manter o caso sob os cuidados do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, respeitando uma prerrogativa de foro que só deve ser assegurada a quem ocupa a cadeira de ministro de Estado. A realidade é um pouco diferente, porém.
Em 2002, três ministros do governo Fernando Henrique Cardoso -- Pedro Malan, Pedro Parente e José Serra -- receberam prerrogativa de foro no julgamento de dois casos pendentes no Supremo. O governo Fernando Henrique terminou no ano seguinte. Pela regra aplicada a Lula, os direitos especiais de Malan, Serra e Parente deveriam ter-se encerrado nesta data. Não foi o que aconteceu. A prerrogativa dos três prolongou-se por longos 14 anos. Atravessou os dois mandatos de Lula, o primeiro mandato de Dilma e só foi encerrar-se em março de 2016. Durante este período, no qual o PSDB foi derrotado em quatro eleições presidenciais consecutivas, os três ex-ministros respondiam aos casos RCL 2130m e RCL 2186 como se ainda fossem titulares de seus respectivos cargos. Encarregado do caso, o ministro Gilmar Mendes poderia ter revogado as prerrogativas. Não o fez.
Gilmar é um ministro com reconhecidas simpatias políticas, mas sua postura neste caso tem apoio numa visão geral que vários juristas respeitam. Acredita-se que o julgamento de réus em condição politicamente exposta -- como ex-ministros e ex-presidentes -- costume provocar muitas pressões indevidas, a favor ou contra, que um tribunal de primeira instância pode ter muito mais dificuldade para enfrentar com serenidade do que uma corte superior. A pergunta aqui consiste em saber por que este raciocínio, que integra a melhor tradição da defesa de direitos e garantias individuais, foi aplicado para beneficiar os acusados do PSDB e não vale para Lula. Afinal, se a sua prerrogativa caducou quando havia se passados apenas três meses e meio depois que deixou o cargo, a dos três ministros tucanos sobreviveu por um período 89 vezes mais longo.
Não é preciso montar uma força-tarefa para descobrir o efeito prático da transferência de Lula para a Lava Jato de Sérgio Moro. Faz parte de um longo esforço para colocar sua liderança à margem da luta política, onde tragédias e farsas se sucedem em repetição infinita.
Não vamos falar da prisão em 1980, quando dirigiu um movimento operário que se tornou um instrumento poderoso contra a ditadura militar. Nem da campanha de 1989, quando foi vencido numa disputa que nos dias finais reuniu tortura -- dos sequestradores de um dos maiores empresários brasileiros -- e suborno -- de uma antiga namorada.
Em 2010, a simples hipótese de que Lula pudesse tentar mudar as regras eleitorais para disputar um terceiro mandato -- coisa que ele sempre desmentiu -- foi suficiente para que todas as iniciativas de seu segundo mandato governo fossem mantidas sob suspeita. No início de 2014 ocorreram pressões violentas contra o Volta Lula pelos adversários do governo. E é óbvio que as chances de um retorno em 2018 fazem parte dos cálculos reais para o afastamento de Dilma sem qualquer prova consistente.
A experiência histórica ensina que no Brasil de 2016, Lula ocupa um lugar preciso. Enquanto mantiver a plenitude dos direitos políticos poderá exercer um papel decisivo -- seja no caso de Dilma vir a recuperar o mandato, seja na hipótese de Michel Temer garantir sua permanência no Senado. Numa saída favorável a Dilma, terá a tarefa de auxiliar a reconstruir o governo. Num desfecho favorável ao golpe, será referência principal de um esforço destinado a recuperar o Planalto em 2018 e transformar o governo Temer numa janela lamentável, mas de curta duração.
A motivação em todos estes casos é a mesma e bem diagnosticada. Através de uma medida de força, tenta-se evitar o risco de deixar a decisão para o eleitorado, alvo de eterna desconfiança -- e não o personagem principal dos regimes democráticos. Por sua própria natureza, um veto está acima do cidadão comum e suas escolhas. Justifica-se a partir de um argumento de valor moral, contra o qual nada se pode fazer a não ser conformar-se. Para isso, a base jurídica é necessária -- com base na convicção comum de que se trata de uma decisão isenta, acima das preferências políticas.
O que está em curso, aqui, através de Lula, é um retrocesso de dimensão histórica: suprimir o caráter popular da democracia nascida a partir da Carta de 1988, para criar um regime que, mesmo tolerando determinadas franquias democráticas, limita lideranças legítimas e reprime a organização dos trabalhadores e da população mais pobre -- como ocorria no Brasil de 1946 a 1964 -- que ficam impedidas de disputar o poder de Estado. Este é o ponto.
Num processo que guarda semelhanças óbvias com o ambiente de perseguição e violência contra militantes e instalações do Partido dos Trabalhadores, o passo fundamental para a construção de uma inviável democracia para as elites foi dado em 1947, quando o Superior Tribunal Eleitoral cassou o registro do Partido Comunista Brasileiro. A medida colocou fora da lei uma legenda que possuía a quarta maior bancada do Congresso Nacional, a terceira maior força parlamentar da Assembleia Legislativa de São Paulo -- maior que a própria UDN, superada em seu próprio berço -- e, acima de tudo, uma respeitável base no movimento operário. Só para deixar claro que se tratava, também naquela época, de uma medida politicamente seletiva. Em 1949 o mesmo tribunal examinou uma denúncia contra os integralistas -- versão verde-amarela do fascismo -- e manteve seu partido na legalidade, num voto coberto de elogios proferido pelo ministro Djalma da Cunha Mello. Conforme o ministro, o fascismo brasileiro havia se mostrado digno do "toque de sensatez" que uniu a nação em 1945, no grande condomínio que permitiu a derrubada de Vargas.
Contada por este ângulo, a história política do país nos últimos setenta anos pode ser descrita como um conflito permanente da maioria da população para enfrentar golpes e golpistas. Em 1950, quando o vulto popular do retorno de Getúlio Vargas pelas urnas estava no horizonte, o Congresso aprovou uma lei de impeachment de forte conteúdo parlamentarista -- e não é difícil saber para que. Depois que uma tentativa de impeachment de Getúlio foi rejeitada pela Câmara, teve início a articulação que o levou ao suicídio. Numa conspiração que incluiu o vice, Café Filho, tentou-se impedir o governador de Minas Gerais Juscelino Kubistcheck de disputar a presidência. Embora JK tenha sido eleito, o próximo passo foi tentar impedir sua posse. Novo fiasco dos golpistas. Mesmo assim, Juscelino foi alvo de dois golpes militares. Passou a faixa presidencial a Jânio Quadros que, permaneceu sete meses no posto. Foi substituído pelo vice João Goulart, que contornou um golpe para tomar posse e não pode resistir ao segundo, que o afastou do poder. Vinte e um anos depois, na democratização, o veto militar impediu a saída natural, pelas eleições diretas, forçando um acordo pelo alto chamado Nova República, que deu posse à mais conservadora das opções em pauta naquela circunstância.
No país de 2016, Lula representa a essência de toda democracia: a possibilidade de alternância de poder, sempre uma ameaça num país governado há cinco séculos pelos 1% de sempre.
A visão convencional sobre a transferência das investigações sobre Lula para o juiz Sérgio Moro costuma ser apresentada numa lógica de aparência imbatível. A ideia é simples: depois que o Senado decidiu afastar Dilma provisoriamente de seu posto, encerrando a possibilidade de Lula assumir a Casa Civil, não faria o menor sentido manter o caso sob os cuidados do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, respeitando uma prerrogativa de foro que só deve ser assegurada a quem ocupa a cadeira de ministro de Estado. A realidade é um pouco diferente, porém.
Em 2002, três ministros do governo Fernando Henrique Cardoso -- Pedro Malan, Pedro Parente e José Serra -- receberam prerrogativa de foro no julgamento de dois casos pendentes no Supremo. O governo Fernando Henrique terminou no ano seguinte. Pela regra aplicada a Lula, os direitos especiais de Malan, Serra e Parente deveriam ter-se encerrado nesta data. Não foi o que aconteceu. A prerrogativa dos três prolongou-se por longos 14 anos. Atravessou os dois mandatos de Lula, o primeiro mandato de Dilma e só foi encerrar-se em março de 2016. Durante este período, no qual o PSDB foi derrotado em quatro eleições presidenciais consecutivas, os três ex-ministros respondiam aos casos RCL 2130m e RCL 2186 como se ainda fossem titulares de seus respectivos cargos. Encarregado do caso, o ministro Gilmar Mendes poderia ter revogado as prerrogativas. Não o fez.
Gilmar é um ministro com reconhecidas simpatias políticas, mas sua postura neste caso tem apoio numa visão geral que vários juristas respeitam. Acredita-se que o julgamento de réus em condição politicamente exposta -- como ex-ministros e ex-presidentes -- costume provocar muitas pressões indevidas, a favor ou contra, que um tribunal de primeira instância pode ter muito mais dificuldade para enfrentar com serenidade do que uma corte superior. A pergunta aqui consiste em saber por que este raciocínio, que integra a melhor tradição da defesa de direitos e garantias individuais, foi aplicado para beneficiar os acusados do PSDB e não vale para Lula. Afinal, se a sua prerrogativa caducou quando havia se passados apenas três meses e meio depois que deixou o cargo, a dos três ministros tucanos sobreviveu por um período 89 vezes mais longo.
Não é preciso montar uma força-tarefa para descobrir o efeito prático da transferência de Lula para a Lava Jato de Sérgio Moro. Faz parte de um longo esforço para colocar sua liderança à margem da luta política, onde tragédias e farsas se sucedem em repetição infinita.
Não vamos falar da prisão em 1980, quando dirigiu um movimento operário que se tornou um instrumento poderoso contra a ditadura militar. Nem da campanha de 1989, quando foi vencido numa disputa que nos dias finais reuniu tortura -- dos sequestradores de um dos maiores empresários brasileiros -- e suborno -- de uma antiga namorada.
Em 2010, a simples hipótese de que Lula pudesse tentar mudar as regras eleitorais para disputar um terceiro mandato -- coisa que ele sempre desmentiu -- foi suficiente para que todas as iniciativas de seu segundo mandato governo fossem mantidas sob suspeita. No início de 2014 ocorreram pressões violentas contra o Volta Lula pelos adversários do governo. E é óbvio que as chances de um retorno em 2018 fazem parte dos cálculos reais para o afastamento de Dilma sem qualquer prova consistente.
A experiência histórica ensina que no Brasil de 2016, Lula ocupa um lugar preciso. Enquanto mantiver a plenitude dos direitos políticos poderá exercer um papel decisivo -- seja no caso de Dilma vir a recuperar o mandato, seja na hipótese de Michel Temer garantir sua permanência no Senado. Numa saída favorável a Dilma, terá a tarefa de auxiliar a reconstruir o governo. Num desfecho favorável ao golpe, será referência principal de um esforço destinado a recuperar o Planalto em 2018 e transformar o governo Temer numa janela lamentável, mas de curta duração.
A motivação em todos estes casos é a mesma e bem diagnosticada. Através de uma medida de força, tenta-se evitar o risco de deixar a decisão para o eleitorado, alvo de eterna desconfiança -- e não o personagem principal dos regimes democráticos. Por sua própria natureza, um veto está acima do cidadão comum e suas escolhas. Justifica-se a partir de um argumento de valor moral, contra o qual nada se pode fazer a não ser conformar-se. Para isso, a base jurídica é necessária -- com base na convicção comum de que se trata de uma decisão isenta, acima das preferências políticas.
O que está em curso, aqui, através de Lula, é um retrocesso de dimensão histórica: suprimir o caráter popular da democracia nascida a partir da Carta de 1988, para criar um regime que, mesmo tolerando determinadas franquias democráticas, limita lideranças legítimas e reprime a organização dos trabalhadores e da população mais pobre -- como ocorria no Brasil de 1946 a 1964 -- que ficam impedidas de disputar o poder de Estado. Este é o ponto.
Num processo que guarda semelhanças óbvias com o ambiente de perseguição e violência contra militantes e instalações do Partido dos Trabalhadores, o passo fundamental para a construção de uma inviável democracia para as elites foi dado em 1947, quando o Superior Tribunal Eleitoral cassou o registro do Partido Comunista Brasileiro. A medida colocou fora da lei uma legenda que possuía a quarta maior bancada do Congresso Nacional, a terceira maior força parlamentar da Assembleia Legislativa de São Paulo -- maior que a própria UDN, superada em seu próprio berço -- e, acima de tudo, uma respeitável base no movimento operário. Só para deixar claro que se tratava, também naquela época, de uma medida politicamente seletiva. Em 1949 o mesmo tribunal examinou uma denúncia contra os integralistas -- versão verde-amarela do fascismo -- e manteve seu partido na legalidade, num voto coberto de elogios proferido pelo ministro Djalma da Cunha Mello. Conforme o ministro, o fascismo brasileiro havia se mostrado digno do "toque de sensatez" que uniu a nação em 1945, no grande condomínio que permitiu a derrubada de Vargas.
Contada por este ângulo, a história política do país nos últimos setenta anos pode ser descrita como um conflito permanente da maioria da população para enfrentar golpes e golpistas. Em 1950, quando o vulto popular do retorno de Getúlio Vargas pelas urnas estava no horizonte, o Congresso aprovou uma lei de impeachment de forte conteúdo parlamentarista -- e não é difícil saber para que. Depois que uma tentativa de impeachment de Getúlio foi rejeitada pela Câmara, teve início a articulação que o levou ao suicídio. Numa conspiração que incluiu o vice, Café Filho, tentou-se impedir o governador de Minas Gerais Juscelino Kubistcheck de disputar a presidência. Embora JK tenha sido eleito, o próximo passo foi tentar impedir sua posse. Novo fiasco dos golpistas. Mesmo assim, Juscelino foi alvo de dois golpes militares. Passou a faixa presidencial a Jânio Quadros que, permaneceu sete meses no posto. Foi substituído pelo vice João Goulart, que contornou um golpe para tomar posse e não pode resistir ao segundo, que o afastou do poder. Vinte e um anos depois, na democratização, o veto militar impediu a saída natural, pelas eleições diretas, forçando um acordo pelo alto chamado Nova República, que deu posse à mais conservadora das opções em pauta naquela circunstância.
No país de 2016, Lula representa a essência de toda democracia: a possibilidade de alternância de poder, sempre uma ameaça num país governado há cinco séculos pelos 1% de sempre.