Mangabeira: o Brasil é um protetorado americano !
"Sou pessoalmente um defensor de democratização da propriedade nos meios de comunicação"
O Brasil precisa de um avanço tecnológico de vanguarda para ganhar protagonismo.
Essa é a opinião do ministro de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Roberto Mangabeira Unger, em entrevista a Paulo Henrique Amorim.
Unger é professor de filosofia na Universidade de Harvard e responsável por conceber um novo caminho de desenvolvimento para o país.
No Governo Lula ele também foi ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, quando formulou um Plano de Defesa e contribuiu para a demissão da Bláblárina – aquela bagróloga.
Lula decidiu entregar a ele e não a ela formulação de uma política para a Amazônia – e ela foi embora (não sem tempo !).
Na entrevista dessa quarta-feira, 29/07, Mangabeira disse a PHA que o Brasil tem que escolher que tipo de aproximação deve ser feita com os Estados Unidos: se dependente ou não em setores estratégicos, como o nuclear, o cibernético e o espacial.
“Eu defendo há muito tempo a aproximação com os EUA. Entendo que teríamos muito a ganhar com uma relação estratégica com os EUA. Talvez uma inibição mais poderosa dessa aproximação é a dependência em que nos encontramos frente aos EUA. Quase toda a nossa comunicação de internet com o mundo, inclusive com a Europa e a Ásia, passa pelos EUA. Eu tenho dito que, se persistir essa situação, na prática, o Brasil é um protetorado dos Estados Unidos. O Brasil precisa decidir se quer ou não quer ser um protetorado dos EUA”, afirmou Mangabeira.
(Clique aqui para ler “O Brasil tem cyber-segurança ? Não !”).
E continuou: “O Brasil é um caso único na história moderna de um país da nossa dimensão que emerge sem pretensões imperais. O Brasil ascende sem imperar. Para que o Brasil possa se rebelar, precisa poder dizer não. E para poder dizer não precisa defender-se. E para se defender precisa ter tecnologia de vanguarda que não dependa das grandes potências do mundo”.
Mesmo com a Operação Lava-Jato e o ajuste fiscal, o ministro acredita que esta seja uma oportunidade para mudanças no país.
“A necessidade é a mãe da invenção. Agora, sim, na hora do aperto fiscal, da queda econômica e da confusão política podemos começar a persuadir o Brasil a se reinventar. Essa é a hora, esse é o momento mágico da transformação estrutural”, sugere.
Na entrevista, o ministro fala em uma nova estratégia nacional de desenvolvimento.
“O Governo está comprometido. É uma estratégia baseada em capacitações educacionais e oportunidades produtivas. A maior parte das nossas empresas continua afundada em um primitivismo produtivo, embora tenhamos uma cultura empreendedora vibrante. Uma parte dessa estratégia é tirar as empresas de seu primitivismo e fomentar o empreendedorismo de vanguarda no Brasil. Para isso, precisamos de um choque de ciência e tecnologia”, esclarece.
Para completar: “E o complexo industrial de defesa, inclusive os setores estratégicos – nuclear, cibernético e o espacial – representa um terreno privilegiado para desenvolver o vanguardismo tecnológico”.
Unger acredita que o Brasil deve ser uma potência revisionista, e crê que a educação necessita de um outro rumo, inclusive na questão dos currículos escolares:
“O que seria melhor para nós seria fazer diferente no Brasil e introduzir cada área do conhecimento de pontos de vista contrastantes. De tal forma a formar uma nação de rebeldes e assegurar que os jovens cheguem à universidade imunizados contra o servilismo intelectual. Isso é o mais importante, a nossa auto-formação”, admite.
Segundo ele, a solução não é mais dinheiro. “Nós estamos acostumados no Brasil a resolver todos os problemas com dinheiro. A verdade é que ideias, traduzidas em inovações audaciosas, são recursos mais escasso do que dinheiro”, opina.
Sobre o papel dos meios de comunicação em relação à estratégia do Governo, ele foi enfático: “Eu sou um defensor pessoalmente de democratização da propriedade nos meios de comunicação. Não se trata de regular, de vigiar a imprensa como ela se organiza hoje. Trata-se de multiplicar os passos para o debate coletivo. É disso que o Brasil já precisa. E isso não é nenhum devaneio”, sentenciou antes de alertar que essa era uma opinião dele e não do Governo.
Leia a entrevista na íntegra:
PHA: Setores estratégicos da Economia, como petróleo e agora a energia nuclear, correm o risco de ser desmontados por ação da Justiça e da própria Polícia Federal. Empresas como a Petrobras, a Odebrecht e a Eletronuclear podem virar, em pouco tempo, um pátio de escombros. O senhor faz parte de um Governo que aparenta incapacidade de impedir que isso se concretize. Por que o Governo age assim?
Mangabeira: O Governo está comprometido com a construção de uma nova estratégia nacional de desenvolvimento. Uma estratégia baseada em capacitações educacionais e oportunidades produtivas. A maior parte das nossas empresas continua afundada em um primitivismo produtivo, embora tenhamos uma cultura empreendedora vibrante.
Uma parte dessa estratégia é tirar as empresas de seu primitivismo e fomentar o empreendedorismo de vanguarda no Brasil. Para isso, precisamos de um choque de ciência e tecnologia.
E o complexo industrial de defesa, inclusive os setores estratégicos – nuclear, cibernético e o espacial – representam um terreno privilegiado para desenvolver o vanguardismo tecnológico.
PHA: O senhor lança a sua visão para um futuro grandioso, mas estamos diante de um fato concreto que é a possibilidade de termos uma obstrução do processo de construção da energia nuclear. O senhor não acha que o Governo deveria ser mais enfático na defesa?
Mangabeira: O Governo tem um compromisso com esse vanguardismo tecnológico. O Governo não pode impedir o curso da Justiça.
Agora, o que eu vejo é que há um problema que tem a ver com a relação entre o nosso desenvolvimento interno, inclusive o desenvolvimento da tecnologia de vanguarda nesses setores, e a nossa posição no mundo.
Veja a situação das nossas relação com os Estados Unidos. Eu defendo há muito tempo a aproximação com os EUA. Entendo que teríamos muito a ganhar com uma relação estratégica com os EUA. Talvez uma inibição mais poderosa dessa aproximação é a dependência em que nos encontramos frente aos EUA. Quase toda a nossa comunicação de internet com o mundo, inclusive com a Europa e a Ásia, passa pelos EUA. O governo americano pode ver todas as comunicações internas do Brasil. E estamos inteiramente independentes do GPS americano. Se os EUA decidissem desligar o GPS teríamos que conduzir os nossos navios de guerra por navegação astronômica. Essa é a realidade.
Eu tenho dito que, se persistir essa situação, na prática, o Brasil é um protetorado dos Estados Unidos. O Brasil precisa decidir se quer ou não quer ser um protetorado dos EUA. As nossas Forças Armadas não são para serem uma força policial que mantenha tranquilidade na América do Sul, como um braço acessório da defesa americana. Nós queremos uma Defesa de verdade. Para isso, precisamos construir o avanço tecnológico, inclusive nos setores cruciais, e só com essa independência é que podemos ser parceiros dos EUA. Parceiros, sim. Satélites e protegidos, não.
PHA: O senhor, durante o Governo Lula, ajudou a formular a Estratégia Nacional de Defesa, que virou lei em 2008. Quais são os pontos cardeais dessa estratégia?
Mangabeira: Um dos eixos é a construção do Complexo Industrial da Defesa. Ali nós prevemos que o Estado, na produção de Defesa, deve operar no teto tecnológico em vez de ter aquilo que historicamente temos tido que é a produção primitiva desvinculada da pesquisa e pesquisa sem vazão produtiva. E, ao mesmo tempo, construir para as empresas privadas um regime jurídico especial de compras públicas que as exima das regras gerais de licitação, mas que, em troca, assegure ao Estado um poder estratégico nessas empresas.
Outro elemento no Complexo Industrial da Defesa é o compromisso com o avanço nos setores estratégicos. Isto é um grande instrumento para o erguimento do país para que se defenda e se desenvolva. Eu não quero viver em um mundo onde só os meigos são desarmados e os beligerantes estão armados até os dentes.
O Brasil é um caso único na história moderna de um país da nossa dimensão que emerge sem pretensões imperais. O Brasil ascende sem imperar. Para que o Brasil possa se rebelar, precisa poder dizer não. E para poder dizer não precisa defender-se. E para se defender precisa ter tecnologia de vanguarda que não dependa das grandes potências do mundo.
PHA: Mesmo em relação aos Estados Unidos ? O senhor cita, por exemplo, que o Barão de Rio Branco e Joaquim Nabuco - “fundadores da política exterior brasileira” - perceberam o que o senhor chama de “nações irmãs”: o Brasil e os EUA que têm afinidades profundas. Ao mesmo tempo, o senhor disse que os EUA não permitirão que qualquer país ganhe em qualquer região do mundo uma ascendência tão incontrastável que sirva de base a buscar uma hegemonia mundial. Devo entender, então, que nessa aliança de “nações irmãs” caberá sempre ao Brasil um papel subalterno, de sub-potência?
Mangabeira: Não. O que eu digo é que a política exterior dos EUA sempre repousou sobre dois princípios.
O primeiro é que os EUA não permitirão que qualquer país ganhe, em determinada região do mundo, uma ascendência tão incontrastável que sirva de base para pleitear uma hegemonia mundial.
O segundo é que no Hemisfério Ocidental os EUA exercerão uma ascendência incontrastável.
Nós não podemos aceitar esses dois princípios, pois são incompatíveis com a nossa construção nacional. O que podemos fazer é construir uma teia de relações de iniciativas comuns, sobretudo iniciativas a serviço da democratização das oportunidades educacionais e econômicas nas Américas. Para que isso aconteça, a preliminar é que não sejamos um protetorado deles. E daí a importância da independência tecnológica.
PHA: O senhor acha que essa associação do Brasil aos BRICS permitirá esse tipo de independência?
Mangabeira: Os BRICS são um instrumento poderoso de mudança do quadro mundial, mas é preciso ter clareza a respeito das limitações e das oportunidades desse movimento.
Os grandes países emergentes como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China estão tentados a apenas pleitear uma posição melhor dentro da ordem mundial existente. A ordem de segurança, monetária e a comercial.
Eu entendo que o nosso interesse profundo é fazer mais do que buscar um lugar ao sol dentro da ordem existente. É mudar essa ordem.
Vou dar um exemplo do regime comercial que está sendo construído no mundo sob a égide dos tratados da Organização Mundial do Comércio e dos novos blocos regionais como o Transpacífico, que os EUA estão organizando. Ali, a tendencia é construir um regime comercial baseado no que se pode chamar de “o maximalismo institucional”. Não é apenas aderir à economia de mercado. É aderir a uma variante especifica da economia de mercado. Por exemplo, uma variante que proíbe, sob o rotulo de subsídios, todas as formas de coordenação estratégica entre governos e empresas que os países hoje ricos usaram para enriquecer. Outro exemplo, uma variante que quer incorporar as regras do comércio, o odioso regime de propriedade intelectual, que foi desenvolvido no final do século XIX, o regime de patentes, que deixa as tecnologias mais importantes para a humanidade nas mãos de um pequeno número de multinacionais.
O nosso interesse como potência emergente, que coincide com o interesse da humanidade, é ser uma potência revisionista. No caso da ordem mundial do comércio, é dizer que queremos o minimalismo institucional. O máximo de abertura econômica com um mínimo de restrição aos experimentos institucionais necessários ao nosso desenvolvimento.
Projeto forte externo como esse só vai existir na medida em que tivermos um projeto interno forte. A minha preocupação maior é que o Brasil tenha um projeto interno forte, que dê braços, asas e olhos a nosso atributo mais importante que é a vitalidade do Brasil.
PHA: A única novidade que a oposição apresentou nos últimos tempos é fazer com que o Brasil se integre à TTP, Transpacific Partnership (do Presidente Obama).
(Clique aqui para ver as ideias mais “novas” do ex-professor e depois banqueiro Edmar Bacha).
O senhor, portanto, considera que isso não é uma boa ideia?
Mangabeira: Nós estamos engajados na América do Sul. Nós não temos nenhum lugar natural, inclusive por geografia, no Pacífico. O que devemos fazer na América do Sul é construir uma convergência profunda em direção a um novo rumo de desenvolvimento. O Brasil e grande parte da América do Sul cedeu à tentação de basear o seu desenvolvimento apenas na riqueza fácil da natureza. É preciso dizer que essa estratégia surtiu grandes benefícios, permitiu manter a maioria dos brasileiros empregada e resgatou milhões da pobreza extrema. Mas, dependia de circunstâncias que não existem mais no mundo, como a alta no preço dos produtos primários, o crescimento da China e a abundância de dinheiro fácil.
Quando essas circunstâncias viraram, a estratégia se inviabilizou. E ao se inviabilizar revelou um defeito que ela tinha desde o início que era o de conviver com o nível muito baixo da produtividade na economia brasileira.
Produtividade baixa não é uma categoria apenas econômica, é também uma categoria moral. Significa condenar a maioria dos cidadãos a viver vidas pequenas. O que devemos buscar é uma nova estratégia de desenvolvimento, um produtivismo includente e capacitador, que busque a riqueza dentro de nós e não apenas dentro da natureza.
Aí estão as grandes vertentes com que estamos trabalhando no Governo.
Primeiro, a prioridade da qualificação da educação básica, a Pátria Educadora, projeto prioritário do Governo.
Em segundo lugar, um conjunto de ações que chamamos de produtivismo includente, destinado a qualificar e a democratizar o impulso produtivo no Brasil.
E em terceiro a política regional. Estratégia nacional só se efetiva no Brasil quando traduzida em política regional.
PHA: Eu tenho acompanhado as suas propostas à frente da Secretaria de Assuntos Estratégicos e percebo uma lacuna: o senhor não trata do bloqueio que a grande imprensa impõe ao Governo. O Governo não consegue sair de trás das grades que a mídia construiu no Palácio do Planalto. O senhor não acha isso relevante, estratégico?
Mangabeira: Eu sou um defensor pessoalmente de democratização da propriedade nos meios de comunicação. Não se trata de regular, de vigiar a imprensa como ela se organiza hoje. Trata-se de multiplicar os passos para o debate coletivo. É disso que o Brasil já precisa. E isso não é nenhum devaneio. Eu venho andando o país, Estado por Estado, e eu vejo que, de forma geral, a mídia regional é relativamente muito mais aberta do que a grande mídia do Sudeste.
Agora, isso não é um projeto do Governo. Não falo em nome do Governo, falo como cidadão e pensador.
PHA: Isso também não seria um objetivo a perseguir para quem quer uma Pátria Educadora?
Mangabeira: Pode ajudar muito, mas o meu foco é o conteúdo e o método da educação. Vou dar um exemplo: estamos com a tarefa de definir um novo currículo nacional, a chamada Base Nacional Comum. No mundo em geral, os currículos nacionais costumam ser uma especie de infantilização das ortodoxias que prevalecem na cultura universitária. Projetam para baixo aquela ortodoxia.
A economia, por exemplo, como se estuda nas universidades no mundo. Não é o estudo da realidade econômica. É o estudo de um método que os teóricos desenvolveram no fim do século XIX. Há então em cada área do conhecimento há o casamento do método com a matéria. Aquele casamento é naturalizado. E há a tentativa de fazer com que os jovens confundam as ideias predominantes com a natureza das coisas. E, como isso, cheguem à universidade emasculados e já preparados para uma vida de servidão intelectual.
O que seria melhor para nós seria fazer diferente no Brasil e introduzir em cada área do conhecimento pontos de vista contrastantes. Para formar uma nação de rebeldes e assegurar que os jovens cheguem à universidade imunizados contra o servilismo intelectual. Isso é o mais importante, a nossa auto-formação.
PHA: O senhor disse recentemente no Instituto Lula: “Proponho ousadia, não copiar currículos de ensino estrangeiros; proponho nos colocar na vanguarda”. Eu lhe pergunto, falta dinheiro?
Mangabeira: O problema maior não é nem dinheiro nem competência. O problema maior é a visão. É definir o outro rumo na educação brasileira e nos organizar de acordo. Nós estamos acostumados no Brasil a resolver todos os problemas com dinheiro. A verdade é que ideias, traduzidas em inovações audaciosas, são recursos mais escasso do que dinheiro.
A necessidade é a mãe da invenção. Agora, sim, na hora do aperto fiscal, da queda econômica e da confusão política podemos começar a persuadir o Brasil a se reinventar. Essa é a hora, esse é o momento mágico da transformação estrutural.
Eu estou andando o Brasil e vejo que o país, fora da cultura política envenenada das elites, se move, quer aprender, construir, inventar e se reinventar.
Agora, é a hora de dar asas, olhos e braços a essa vitalidade assombrosa, anárquica e quase cega que se movimenta no país.
Eu vi isso em todo o país.
Os governadores do Centro-Oeste se reuniram em julho em Goiânia e decidiram organizar uma instituição deles, chamada Brasil Central, para começar a formar uma estratégia de baixo para cima. A concepção da política regional no Brasil tem que mudar radicalmente.