Por Silvia Kochen, na revista Problemas Brasileiros:
O policial canadense Michael Sanguinetti, numa palestra sobre segurança em um campus universitário de Toronto, em 24 de janeiro, fez uma recomendação que repercutiu em todo o mundo. Ele disse que as mulheres, para evitar estupro, não deviam usar roupas que pudessem sugerir que fossem vadias. A infeliz declaração foi o estopim para um movimento conhecido como a Marcha das Vadias (ou Slutwalk, no original em inglês), que se alastrou por todo o mundo nos últimos meses.
Em 3 de abril, 3 mil pessoas foram às ruas de Toronto vestidas de forma sensual para protestar contra a cultura que transforma as mulheres em culpadas pela violência que sofrem. “Já basta, não se trata apenas de uma ideia ou de um policial culpando as vítimas, mas de mudar o sistema e fazer algo construtivo com a raiva e a frustração”, disse Heather Jarvis, de 25 anos, uma das organizadoras da marcha em Toronto.
Desde então, a indignação se espalhou pelo mundo e houve vários protestos semelhantes nos Estados Unidos, na Austrália, Nova Zelândia, Holanda, Argentina e também no Brasil, onde a primeira Marcha das Vadias ocorreu em São Paulo. A manifestação também ganhou a adesão de muitos homens e teve como mote “para evitar estupro é preciso ensinar os homens a não fazer isso, e não dizer como as mulheres devem se vestir”.
O movimento ganhou força graças à internet, que está permitindo um novo olhar sobre o mundo em que vivemos. Acontecimentos que antes eram ignorados pela maioria das pessoas chegam ao conhecimento de todos. O resultado é que, com apenas uma ideia na cabeça e um palmtop na mão (ou um notebook, ou ainda um simples celular com câmera), as informações ganham novas cores e possibilidades e promovem a cidadania em uma dimensão nunca vista antes. Assim nasce um novo estilo de jornalismo, de caráter colaborativo.
O esquema tradicional de trabalho jornalístico exige uma estrutura imensa e extremamente onerosa. É preciso ter repórteres a postos em praticamente cada ponto em que algo de interessante possa ocorrer. Como isso é impossível, acontece muita coisa sem que a imprensa se dê conta. Mesmo assim, em um grande jornal ou agência de notícias produz-se um volume imenso de informação a cada dia. Essas notícias passam pelo crivo dos editores, que escolhem o que entra no jornal impresso, no noticiário de rádio ou no telejornal. Os critérios podem ser inúmeros, mas normalmente eles convergem para dois pontos: o que pode atrair anunciantes e o que deve agradar a leitores ou espectadores. Não surpreende que muitas notícias interessantes fiquem de fora das pautas dos jornais e que esses fatos acabem por conquistar espaço na internet.
Redes sociais
A grande diferença entre as mídias convencionais e as novas está no sentido da informação, afirma Graça Pinto Coelho, professora e pesquisadora dessa área na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “As mídias corporativas fazem a mediação das práticas sociais – educação, cultura, política etc. – de forma vertical”, diz. Ela explica que o jornal, o rádio ou a TV escolhem as vozes e os cidadãos que vão participar do processo social de interação na sociedade. “Ou seja: as mídias tradicionais têm uma agenda e engajam as vozes da sociedade de acordo com suas conveniências.”
Com a internet, surgiram novas mídias, como os blogs, o Twitter e o Facebook, entre outros. Chamadas de redes sociais, são espaços em que as pessoas comentam assuntos livremente com todos, como é o caso dos blogs; com seus amigos, através do Facebook; com pessoas que seguem o que as outras dizem porque há alguma afinidade de interesses, que é o que acontece no Twitter. “O formato das mediações e das interações nas redes sociais é diferente; nelas, cada um de nós pode emitir opiniões, validar significados e interagir para tratar as informações de modo que elas sejam socialmente construídas”, acrescenta Graça Pinto.
No Brasil, muitos movimentos surgiram nas redes sociais. Um exemplo é o “churrasquinho da gente diferenciada”, que fez sucesso no Facebook. O evento foi uma reação ao elitismo de habitantes do bairro de Higienópolis, um dos mais abastados de São Paulo, que apoiaram a decisão do governo paulista de alterar o projeto que previa a construção de uma estação de metrô no bairro, transferindo-a para outro local. Segundo declarou uma moradora a um jornal, a estação faria com que circulassem no bairro “drogados, mendigos, uma gente diferenciada...”
Assim que a notícia foi publicada, milhares de internautas começaram a publicar piadas sobre o assunto no Twitter e decidiu-se fazer um churrasquinho (coisa tida como de gente pobre) em frente ao luxuoso shopping do bairro. Mais de 50 mil pessoas confirmaram presença no Facebook, mas a notícia de que a polícia não permitiria o evento fez com que ele fosse cancelado e depois, devido à pressão dos que queriam se manifestar, reconfirmado.
O evento reuniu diante do shopping algumas centenas de pessoas, que, após um churrasquinho com cerveja e refrigerante, colocaram-se em marcha até o local previsto para a construção da estação do metrô, na esquina da Avenida Angélica com a Rua Sergipe, onde havia mais manifestantes. Um carnaval de rua invadiu o bairro, e o governo paulista voltou atrás, mantendo o projeto da estação na região.
A professora Graça Pinto compara o modo de interação nessas redes a um rizoma – raiz que está constantemente criando novos ramos que se entrelaçam. “Nas mídias digitais cada um pode produzir a própria informação. Com isso, o indivíduo que tem acesso à internet expõe sua visão de mundo, e essas informações entram na agenda social”, analisa a pesquisadora.
Ressaltando a crise do modelo democrático representativo no mundo todo, Graça afirma que as redes estão efetivamente sinalizando uma mudança nos sistemas políticos, “porque são plurais e participativas”. Como exemplos, cita os movimentos revolucionários que assaltaram a ditadura egípcia e os protestos de Madri. Ao mesmo tempo, essas mídias também constroem destinos políticos e sociais. A eleição do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, foi apontada como uma demonstração do poder das redes do mundo virtual.
Muitos acreditam que as novas mídias estão fortalecendo o jornalismo com a democratização da informação. “A grande revolução da web é colocar todos os agentes na mesma plataforma tecnológica, de modo que um internauta anônimo pode ter um artigo quase tão eficaz quanto um da grande mídia”, diz o jornalista e blogueiro Luis Nassif. Segundo ele, a contribuição mais importante é a ampliação da pauta de temas, que nos jornais tradicionais ficou reduzida a meia dúzia de assuntos, normalmente o escândalo da hora.
“Hoje há uma verdadeira revolução na área de políticas sociais que está mudando a cara do país, mas os jornais insistem em bater sempre na mesma tecla”, alerta Nassif. Por isso, a internet virou ferramenta para que muitas pessoas divulguem experiências de gestão, de modelos educacionais, de regionalização etc., através de blogs. O jornalista acredita que o acesso a novas fontes de informação com a internet rompeu as amarras que limitavam a compreensão do Brasil e colocou em xeque a credibilidade dos grandes jornais. “O modelo agressivo de jornalismo da ‘Veja’ tem vida curta, pois não há como se ter denúncia todo dia”, acrescenta ele.
Credibilidade
Nem sempre, porém, o que aparece na web é confiável. Um exemplo é o caso da Lésbica de Damasco, título de um blog que surgiu em fevereiro (A Gay Girl in Damascus) para denunciar as condições de vida no Oriente Médio, escrito por Amina Abdallah Arraf, uma lésbica síria, de mãe americana, que escrevia em inglês fluente. Durante quatro meses, leitores do mundo todo acompanharam os relatos de Amina sobre o dia a dia na Síria e sua luta pela democracia. Esses textos passaram a ser reproduzidos em vários blogs e sites ocidentais com bandeiras feministas, lésbicas e pró-democracia no Oriente Médio.
No início de junho, no entanto, a internet agitou-se com a notícia de que Amina teria sido sequestrada por agentes do governo e estaria sendo violentada e torturada. Imediatamente, internautas passaram a trocar informações para descobrir o destino de Amina e ver como poderiam ajudá-la. A colaboração coletiva levou a uma revelação surpreendente: o blog era criação de Tom MacMaster, um americano de 40 anos que vive na Escócia.
Sem conseguir encontrar uma única pessoa que conhecesse Amina pessoalmente, os internautas começaram a suspeitar de que algo estava errado. Depois, a foto da blogueira foi identificada como sendo de uma moradora de Londres, que não tinha relação alguma com a Síria. Descobriu-se que o computador que atualizava o blog estava localizado na Escócia e até mesmo as fotos usadas nas ilustrações estavam no álbum online da mulher de MacMaster.
Em uma semana, a farsa foi desmontada, e o blogueiro confessou que teve a ideia da personagem lésbica para defender a democracia no Oriente Médio e para exercitar sua veia literária. O episódio gerou revolta de todos, principalmente dos próprios ativistas que vivem em Damasco, porque a farsa de MacMaster colocou sua segurança em risco, já que os incentivou a mostrar a cara para apoiar Amina.
Expansão acelerada
A diversidade de informações e opiniões é a principal marca da efervescência da comunidade virtual. Pessoas com diferentes interesses oferecem ou buscam informações sobre os temas mais insólitos e variados. Há twitteiros focados em política, curiosidades, futebol, moda ou música, por exemplo, e esses focos é que acabam por atrair uma rede de seguidores com interesses afins. Os blogs, por sua vez, também refletem os interesses de seus idealizadores, que podem incluir política, bichos de estimação, esmaltes de unha, gastronomia ou qualquer outro assunto, por mais insólito que seja.
O jornalista e blogueiro Altamiro Borges, presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, acredita que atualmente ocorre uma “explosão de jornalismo” no universo de blogs e redes sociais da internet. “O bom é que na web temos 20 versões sobre o mesmo fato; na mídia impressa, apenas uma ou duas.” Conhecido na internet por seu Blog do Miro, ele explica que, nascidos na década de 1990 como diários virtuais, os blogs são hoje o veículo de comunicação que apresenta o processo de expansão mais acelerado.
Segundo Miro, a juventude se informa pela web, já que a credibilidade da mídia tradicional está se deteriorando. Isso se traduz em queda de leitores de jornais e de audiência de TV e rádio, com o consequente recuo de receitas publicitárias. “Nos Estados Unidos, o ‘The New York Times’ passa por sérias dificuldades financeiras, e os anúncios virtuais já faturam US$ 2,6 bilhões a mais que os impressos”, afirma.
Uma tendência que se observa atualmente é a criação de portais colaborativos, como o www.teialivre.com.br. A ideia partiu do publicitário Marco Antonio de Aguiar Garcia, conhecido na web como Biruel. Apesar de ser usuário antigo da internet, ele só começou a acessar realmente as redes sociais em agosto de 2010, entusiasmado pela campanha eleitoral, e ganhou muitos seguidores com as tiradas de humor sobre o que noticiavam os jornais.
Passadas as eleições, Biruel pensou em um modo de difundir informações que não têm espaço nos grandes jornais. “Hoje, quem leu um jornal leu todos, mas achamos importante manter a pluralidade de opiniões e dar espaço para ideias progressistas.” Por isso, junto com um grupo de pessoas, criou o Teia Livre, que foi ao ar em 1º de janeiro. O portal reúne cerca de 150 colaboradores, entre colunistas e blogueiros, que comentam de tudo, e já tem uma média de 25 mil acessos mensais. Em quatro meses, o Teia Livre alcançou a 6.843ª posição entre os sites brasileiros em número de acessos, e hoje Biruel estuda um meio de financiar a expansão de sua proposta de uma visão mais plural na web com ações como a promoção de encontros de blogueiros.
Outro destacado exemplo é o portal www.diarioliberdade.org, da Galícia, uma nação sem Estado (tal como o País Basco e a Catalunha), com 3 milhões de habitantes, onde nasceu o idioma português e que hoje é controlada pela Espanha. No início, Portugal era um condado da Galícia, que foi o primeiro reino independente da Europa, fundado no ano 410, explica Maurício Castro, editor do Diário Liberdade e professor de português em seu país. A ideia do portal, nascido em fevereiro de 2010, foi criar um espaço para oferecer um noticiário amplo, com assuntos que não estão nos jornais tradicionais, e difundir a causa da independência da Galícia e seu ingresso na comunidade de países lusófonos, já que o galego atual é uma espécie de português arcaico com muitas expressões do espanhol.
Hoje, as escolas na Galícia não dão o devido destaque ao galego, que está presente no máximo em uma ou duas matérias, e os falantes do idioma são coagidos a falar só espanhol para conseguir um bom emprego, denuncia Castro. Por isso, é fundamental conseguir apoio de portugueses e brasileiros para a causa galega, diz o editor. O portal tem muitos colaboradores no Brasil e é sustentado por seus leitores, que podem fazer microdoações de até € 1, e por alguma publicidade. Inspirado em congêneres como o DemocracyNow, em inglês, ou o Kaos en la Red, em espanhol, o Diário Liberdade tem uma média de 7 mil acessos individuais diários e oferece todo tipo de conteúdo, principalmente aqueles que divulgam visões alternativas, de esquerda. “Só barramos textos que não condizem com nossa proposta, como os que têm teor sexista ou racista”, diz Castro.
O futuro da informação
O jornalismo digital é conduzido atualmente por dois tipos de blogueiros. Um deles é o jornalista que tem larga experiência, mas não encontra espaço nos veículos tradicionais para realizar um trabalho que considere satisfatório. Esse é o caso dos blogs de Luis Nassif (Portal Luis Nassif), Rodrigo Vianna (Escrevinhador), Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada) e Luiz Carlos Azenha (Viomundo). O outro tipo é o ativista digital, que expressa uma posição em determinadas questões – de gênero, de etnia etc.
Como exemplo temos o NaMariaNews, blog de uma professora que costuma ler o “Diário Oficial” e usa os dados para discutir a política educacional do governo paulista, que na opinião dela tem uma abordagem de negócios. Seu blog, que denunciou que o estado gastou mais de R$ 9 milhões em 2010, antes das eleições, em assinaturas de jornais e revistas para as escolas de São Paulo, critica também as despesas com materiais didáticos escolhidos pela Secretaria da Educação para a rede pública.
Segundo Miro, atualmente vemos uma sinergia na convivência entre ativistas digitais e jornalistas, mas a garantia de informação democratizada no futuro passa pela discussão de mecanismos de financiamento para blogs. Na mídia tradicional, os anunciantes garantem a receita, o que significa que esses veículos não têm interesse em reportagens que possam questionar grandes grupos econômicos. Miro lembra que a Europa criou legislação após a Segunda Guerra Mundial para contrapor-se a movimentos do estilo nazista com a garantia da diversidade de informações. Na Itália, por exemplo, há uma lei que obriga a destinação de pelo menos 20% da publicidade oficial a veículos alternativos. “O jornalismo dos veículos tradicionais está sufocado pelos grandes grupos econômicos e a blogosfera vem ressuscitando o jornalismo, com seu compromisso de ouvir vários lados”, afirma.
Luis Nassif diz que as eleições do ano passado mostraram a força das novas mídias, mas agora as pessoas se perguntam o que fazer. Ele acredita que com a internet o jornalista está assumindo uma nova função. “Ele não é mais o dono da informação, mas um mediador.” Nassif acredita que, no futuro, o papel do jornalista será o de estimular discussões públicas, interpretar esse debate e encontrar novas formas de estruturar essas informações para que elas sejam transformadas em matérias jornalísticas. “Vamos ter de trabalhar com informações desestruturadas e quem souber fazer essa síntese vai dominar o mercado.”
Usamos cookies com propósitos estatísticos, para mostrar anúncios relevantes, para lhe ajudar a se registrar em nossos serviços, o para lembrar suas configurações. Confira nossa Política de privacidade e cookies.